quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Escrever e viver

Não sou um intelectual, aliás, as minhas habilitações literárias são muito reduzidas. Já lá vai o tempo em que os professores do ensino primário pediam aos alunos para redigirem uma composição, e eu descortinava o embaraço de muitos catraios. Uns ficavam com o rosto pasmado como se estivessem a ser asfixiados pelos pensamentos que não brotavam para o papel, havia também os que começavam a esfregar freneticamente o traseiro no assento como se fossem acometidos por uma inesperada comichão, ou outros evidenciavam todos os indícios de esgravatarem exaustivamente os pensamentos na tentativa de delinearem uma ideia.
Às vezes, não sei quanto tempo estaria numa imobilidade contemplativa observando o que me circundava e, ao mesmo tempo, absorvendo-me mais e mais na realidade imaginária que a minha mente ia criando. Depois subitamente, como se uma força externa se apoderasse do meu próprio corpo e do espírito, começava a escrever, a escrever…
Talvez coçasse as barbas grisalhas e, com ar compassivo, proferisse, “Fernando, escreves muito bem, mas a tua composição tem muitas falhas gramaticais”, e eu devia-o olhar, talvez timidamente escondendo a vaidade que sentia, “Fernando, começa a ler muito, está bem?”. Não me lembro o que retorquia, nem o que pensava, mas, no ciclo preparatório e no ensino secundário, repetiram-se mais algumas vezes cenas semelhantes à narrada.
E descortino-me agora a abrir um livro, a desfolhá-lo, a inspirar o aroma a tinta e, frustradamente, a tentar descobrir a textura das palavras, a magia da leitura. Porém, o livro ficava abandonado numa prateleira ou esquecido no canto da mesa.
Confesso que foram raras as vezes que a leitura de um livro me embriagou de júbilo. Sentia-os simplesmente objectos vazios, sem emoções, sem sentimentos, enfim sem alma e vida própria.
“Até Ao Fim”, do autor Virgílio Ferreira, deve ter sido a primeira obra cuja a leitura me saciou de prazer fazendo-me reflectir em questões profundas.
No entanto, continuei a ler muito pouco. Embora escrevesse também raramente, já o acto de escrever sentia-o deleitoso, e escrevia principalmente quando a minha alma transbordava de deslumbramento. Não precisava de um computador, nem de uma folha de papel, quando depois de um dia de escalada desportiva, num desfiladeiro perdido nas montanhas do sul de Espanha, vislumbrava um avermelhado pôr-do-sol a diluir-se no horizonte, ou à noite um céu repleto de estrelas, escrevia nas estrelas, nas galáxias, na eternidade, escrevia até os olhos se me fecharem e adormecer em paz e feliz.
Anos mais tarde o senhor destino impeliu-me numa trajectória que me obrigou a desenvolver mais os músculos do intelecto. Acometido pela doença que quase arrebatou a luz aos meus olhos, inevitavelmente a força íntima do meu carácter instigou-me a lutar, a adaptar-me à nova situação de vida. Aprendi a trabalhar com um software designado, “Leitor de ecrã”, o que me permitiu utilizar o computador, aliás, para os cegos ou pessoas com baixa visão, ter acesso às novas tecnologias da informação é fundamental para a autonomia dos deficientes.
Algumas ferramentas do computador, assim como também o Braille, avivaram as energias mais subtis da minha consciência para o prazer da leitura. Comecei então a ser mais selectivo com as obras que escolhia e que escolho para ler.
“Fernando, refinar o talento é uma questão de trabalho, e tu tens talento, entendes?”, olhou-me intensamente como se conseguisse ler os meus pensamentos, e progrediu com as suas conjecturas, “Uma pessoa até pode ter um português correctíssimo, tudo no sítio certo, pontos de finais, vírgulas, e por aí fora, mas se não tiver talento, nunca conseguirá escrever textos criativos…”, e eu tentava absorver as suas palavras como um bálsamo que mais tarde quando desmotivado, me estimulariam a progredir com os meus escritos. Ah! Minha amiga Cláudia, minha amiga escritora que tanto me tens incentivado a escrever… Mil vezes obrigado.
E foi no dia 1 de Julho do ano de2010 que o meu primeiro livro veio à luz do dia, “Sombras da Alma”.
E claro que continuo a escrever, no entanto, considero que a minha escrita está a sofrer uma metamorfose. Sou um mero aprendiz de escritor, e nesta fase sinto oscilações no estilo e ritmo da escrita, talvez seja um processo natural de evolução. Acontece-me principalmente quando leio bons autores, apercebo-me da influência que os mesmos acabam por exercer nos meus textos. Porém, espero que cada vez mais o meu estilo tenha uma identidade e carácter próprios.
E o próximo livro? Sinceramente não sei, mas já estou a trabalhar numa nova colectânea de contos. É, neste momento, mais importante aperfeiçoar-me do que pensar em datas, há um provérbio chinês que diz, “Quando o discípulo está preparado o mestre aparece”, talvez não se enquadre muito bem neste contexto, enfim na falta de me lembrar de um que se ajuste melhor… Mas, como se costuma dizer, nada acontece por acaso e, por isso, quando o meu próximo filho literário tiver que vir à luz do dia, inevitavelmente esse momento acontecerá no ciclo ilusório do tempo.
Desejo a todos boas leituras e, principalmente, bons sonhos…

2 comentários:

  1. Que maravilha, meu querido!
    De facto, é sempre com enorme emoção, salpicada de grande alegria, que fixo o meu olhar na tua escrita!
    Tu tens a capacidade, de nos transmitir a importância, de estabelecer objectivos para ultrapassar as adversidades, combatendo com a FORÇA INTERIOR.
    Obrigada, amigo, por existires............
    Parabéns, pela forma como escreves, pelo modo como tens manipulado a tua mente para potenciar a tua evolução... pelo SER HUMANO que sempre se revelou em ti, desde que te conheço!
    No meu grande abraço, deixo o meu melhor carinho.

    Zita

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  2. Caro Sr. Fernando
    Estou perfeitamente convicta que o seu caminho está traçado. Não é Escritor quem quer, apenas quem tem essa capacidade. A sua é bem real e não pode fugir a esse maravilhoso "dom".
    Assim, apenas lhe posso dizer que os seus textos são profundos, emotivos e têm muita substância e magia.
    Por isso, só tem mesmo de continuar a escrever e continar a deliciar-nos com os seus belos textos.
    Abraços e até breve . . .

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