segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Jardins da minha aldeia - Silveira dos Limões


 Depois deste longo tempo de ausência sem publicar nenhum post, cá estou com mais um novo escrito. Um poema que é uma forma singela, mas verdadeira de homenagear as pequenas aldeias da Beira Baixa, e todos os que trabalham, por iniciativa própria e voluntariamente, para as manterem com uma memória viva de outrora, cujos nossos olhos possam vislumbrar, nossas mãos tactearem, uma humilde casita construída com pedras de xisto, o forno comunitário onde semanalmente os aldeões coziam o pão, a eira onde  as massarocas de milho eram malhadas, e tantos outros vestígios de uma cultura que infelizmente foi mal preservada.
Da minha infância submergem-me imagens nítidas. Com oito ou nove anos de idade encavalitado na pasteleira do meu avô, pedalando com imenso esforço a bicicleta demasiada pesada para o meu corpo franzino, porém, quando descortinava uma aldeia e circulava pelas ruelas, uma espécie de deslumbramento apoderava-se magicamente do meu espírito de criança. As casas de paredes meio tortas de pedras de xisto, o silêncio intenso rasgados pelas vozes dos homens e mulheres de rostos lavrados que me olhavam com curiosidade, “Bom dia”, “Gaiato, quem são os teus avós”. Não sei bem se imaginava o presépio ou um conto de fadas, mas tudo aquilo contrastava com a cidade de Lisboa e, por isso, viajava num mundo de fantasia e encantamento.
E agora tento reencontrar esses lugares, no entanto, é com tristeza que descubro que a magia de outrora da maioria das aldeias foi abruptamente devorada pelo ferro, pelo cimento, pelos tijolos… É por isso que me alegra vislumbrar alguma aldeia que guarda ainda um bocadinho desse passado, aliás, um passado que é de todos nós, portugueses, que é parte integrante do nosso património.
E por hoje fico por aqui… Quem sabe se um dia destes volto a escrever recordações do tempo em que o meu olhar se fundia nas estrelas suspensas no firmamento e o meu espírito se diluía no silêncio embalado pela melodia das cigarras e grilos… E então o instantaneamente o universo ficava perfeito, e eu sentia o infinito, a eternidade…


Canteiros de xisto

Pedras agrestes, rudes, selvagens…
Mas belas,
Emoldurais as mais harmoniosas flores.
E que memórias guardareis?
Mãos calejadas,
Braços fortes,
Arrancando-vos das pedreiras…
E depois empilhando-vos em longos muros
Ao redor das hortinhas, das grandes herdades…
Ou pedra sob pedra,
Ergueram-vos nas elegantes paredes,
Que edificaram as humildes casas de xisto.
Mas nos tempos modernos substituíram-vos por ferros, tijolos…
E pobres meninas,
Que vos abandonaram nas barrocas,
Escondidas entre estevas e silvas…
E agora novamente olhos de poeta descobriram-vos
e mãos de artista transmutaram-vos nos divinais jardins da minha aldeia.
Resplandecei harmonicamente com o cosmo, para todo o sempre!

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E agora deliciem-se com as fotografias de Hélder de Pina Nunes




sábado, 19 de março de 2011

Vai um bocadinho de álcool para a veia?


1ª Parte
 São nove da matina, “Vai uma taça de tinto?”, e porque não, faz bem à circulação sanguínea, já dizia meu avô ou bisavô; e, ainda por cima, ajuda a matar o bicho, e em tempos de crise, é mais económico do que um galão, até porque o leite hoje em dia já não é o que era, tem mais substâncias químicas do que leite puro da vaca… Vinho é o sangue da parreira, é o leite vermelho, é a força a escorrer nas veias! E logo à tardinha para acalmar o stress acumulado num dia de trabalho, “Vai uma cervejola?”, e depois quem sabe, bebemos mais uma e outra e ainda mais algumas…. A cerveja tem uma percentagem muito baixa de álcool, e até já se sabe que a levedura dos cereais com que é fermentado este maravilhoso liquido doirado, faz reduzir os níveis do mau colesterol, e a mente fica sempre mais sossegada, ah pois fica!
É véspera de fim-de-semana, “Que fixe!”, “Vou curtir bué!”, “Acho que vou apanhar uma buba!”, exclamam entusiasticamente os adolescentes. Aconselham os papás, “Se beberes, não abuses”, um outro talvez dê uma risada, “Tem juízo, olha que eu já tive a tua idade, não te quero em casa de rastos”, o mais cauteloso e medroso diz, “Vê se não bebes álcool, mas tem muito cuidado com a droga, afasta-te sempre dessas companhias, ouviste?”.
2ª Parte
“Vai um charrinho?”, “Só uns bafos”, “Qual é o problema, umas ganzas são inofensivas, e a gente curte à brava, fartamo-nos de rir”, “Aguentem aí, vou comprar mortalhas, volto já”.
Na tasca da esquina, já depois de beber um café e um abençoado bagaço, sai à rua o tio Zé para fumar um cigarrinho, “Olhem só para aquela miséria”, afirma chamando a atenção dos companheiros, apontando o indicador para uma enorme árvore do lado oposto da rua, “Estão-se a drogar”, “Talvez estejas enganado Zé”, abana a cabeça em reprovação, “Então eu não sei, não nasci ontem, só o cheiro não engana”.
A mãe está em pânico, chegou-lhe aos ouvidos através da tagarelice de umas idosas lá do bairro, que o seu filho anda a fumar umas cenas. Imagina-o a injectar-se com heroína, vê-lo a auto-destruir-se…
As duas irmãs riem-se divertidas e vão balbuciando palavras entusiásticas, “Pois é, os nossos filhotes já estão uns homens”, “Tens razão, cresceram depressa”, “Eles bem tentaram disfarçar, mas vinham cá num estado que não enganavam ninguém, e cheiravam a álcool”, “Na idade deles é natural, é preciso é que não abusem”.

A, “1ª Parte”, da narrativa exposta acima, infiltra-se na mente de muitos nós com naturalidade, quase como uma doce e subtil melodia enraizada no inconsciente colectivo dos portugueses.
Na, “2ª Parte”, o texto conecta-nos automaticamente a todo um sem fim de metáforas que expressam os nossos medos desse monstro destruidor, que é o flagelo da droga.
Mas pergunto eu, será que o álcool não é uma droga pesada? Não, de maneira nenhuma estou a defender o consumo de qualquer espécie de estupefacientes, nem considero que as ganzas sejam inofensivas… Mas é que é incrível como é que o álcool que arruína a vida de tantas criaturas, é tão bem aceite, tão bem tolerado, pela sociedade em geral. E, no nosso país, parece-me que muitas vezes o álcool faz parte da tradição cultural do povo. Quando me refiro ao povo, não estou a classificar uma classe social desfavorecida, mais pobre, com menos recursos aos meios de ensino e educação, mas a todos os cidadãos portugueses. Infelizmente o fenómeno do alcoolismo está vinculado a todas as classes sociais.
Na quinta-feira de manhã saí de casa e transitei até ao pequeno estabelecimento que fica a poucos metros da minha casa. E, quando saboreava o meu café, vislumbrei pelo canto do olho uma silhueta onde se destacava a cor verde florescente, e discretamente enxerguei o sujeito a empinar uma taça de tinto. Só quando volvi à rua é que conclui que a referida figura era um operário da câmara municipal que varria o lixo dos passeios… Tudo bem, afinal só tinha que conduzir o carrinho de mão com alguma destreza, o que não exige grande lucidez mental…
E, como a manhã irradiava um sol resplandecente, na sexta-feira decidi caminhar meia centena de metros e fui beber café numa ruazinha um pouco mais afastada do meu lar. Não, não encontrei novamente a personagem do dia anterior, mas um bom homem que pedia uma cervejola. Às nove da manhã talvez já estivesse com calor, com cede… Pois é com o tempo primaveril nunca se sabe as reacções que poderá desencadear na psique humana…
E hoje Sábado também por volta das nove horas da manhã, deparei-me com uma fila de criaturas, homens na casa dos cinquenta anos, sessenta e alguns mais velhos, ao balcão a empinar taças de branco e tinto. E viva a alegria!
Vamos mas é embriagar as nossas mentes com as coisas boas da vida. Aproveitando o sol deste fim-de-semana, por exemplo, podemos caminhar à beira do mar ou do rio, andar de bicicleta… E sempre, sempre cultivar os nossos espíritos com prazeres salutares, praticar desporto com moderação, por exemplo, yoga, Pilatos, ou outras actividades físicas que privilegiem a saúde da mente e do corpo, ir ao cinema ou ao teatro, ler um bom livro, são igualmente hábitos sadios. E claro, engrandecer os laços familiares, as boas relações entre amigos… Enfim tudo o que nos ajude a sermos mais serenos, mais tranquilos, mais felizes, para que um dia ao olharmos para as nossas vidas não as vislumbremos como qualquer coisa oca….
E, já agora, façam o favor de serem felizes.

terça-feira, 8 de março de 2011

Tinha que escrever isto...


E quando preciso de escrever as coisas mais simples como esta, apenas duas palavras de agradecimento, “Obrigado a todos”, “Agradeço pelo ânimo que me têm doado”, “Bem aja”, meras palavras que expressem os meus verdadeiros sentimentos, é que fico estacado sem saber o que redigir, a praguejar com o computador, para depois me lembrar que ele não tem culpa e, por isso, pedir-lhe desculpa…
E, esgravatando os confins das entranhas do meu âmago, descortino uma recordação, uma comoção imensa, intemporal; e, com um pedacinho de memória da infância, outra da adolescência, começa-se a delinear um subtil fio condutor que me instiga a escrever, a escrever…
E, por breves momentos, levanto-me, olho através da vidraça as luzes citadinas, mas preciso de sentir a grandeza da vida, Abro a janela. A brisa fresca arranha-me levemente o rosto, e tudo se expande, expande-se talvez apenas a minha consciência, porém, o universo revela-se-me infinito, eterno…
Pergunto-me silenciosamente como um eco que vai e vem sempre ressoando na minha mente, “Agradecer a quem?”, mas esse, “quem”, já abarca todas as respostas que badalam agora no meu espírito numa vibração divinal, “Agradecer a Deus”, “Agradecer ao universo”, “Agradecer à vida”, “Agradecer a todos”, “E, principalmente, agradeceres a ti mesmo”. Penso fazer o que o meu ser despido do ego me sussurra ao ouvido interno, mas não compartilhá-lo neste post, ocultar este parágrafo.
“Criancinha”, “Frágil”, “Tem juízo”, “Que vergonha!”, balbucia o ego como um real senhor autoritário… Mas subitamente, eis que se dissolvem os murmúrios, e fica só o silêncio, e fica só o amor, e fica só mais não sei o quê….
Deixo-me cair de joelhos no chão, as lágrimas derramam-se-me pelo rosto, e clamo, “Obrigado Fernando”, mas, veloz como um relâmpago, vislumbro sucessivos rostos… E entendo que todos os que se têm cruzado no meu caminho são parte integrante do meu ser, e entendo tantas outras coisas…
Mas neste momento, não necessito de entender nada, só preciso de abrir o meu coração e dizer, “Obrigado a todos, pela coragem que me têm doado, por terem sempre acreditado em mim, na minha potencialidade de, “ser”, pelas palavras sinceras, pelos sorrisos, pelos carinhos, por todas as coisas maravilhosas que vocês são e que fizerem de mim uma pessoa mais “humana”, “Mil vezes obrigado”.
E então agora vêm as palavras finais de agradecimento, “Bem aja”, “Que as vossas vidas sejam abençoadas”.

terça-feira, 1 de março de 2011

Caça submarina


Na fotografia acima está o meu primo segurando em cada uma das mãos, um safio, o maior pesa aproximadamente quinze quilos.

“”Foste tu que me meteste o vício da caça submarina”, murmurou o meu primo pensando não sei muito bem em quê, talvez vislumbrando outrora num tempo não muito distante, e as suas palavras ficaram a bailar-me na mente instigando-me a escrever um post sobre esse nobre desporto que é praticado no reino de Neptuno.
“Caça submarina”, e, ainda hoje em dia, estas palavras têm o deslumbramento de atear a fertilidade da imaginação humana. Homens com pulmões à tiracolo que mergulham a grandes profundidades exponde-se aos iminentes perigos, para capturarem os animais do mar e, como a minha irmã diria, mais umas tantas baboseiras que as criaturas fantasiam, porém, que estão dissociadas da realidade deste desporto.
O praticante desta modalidade não recorre ao auxílio de escafandros, nem de garrafas de ar comprimido, nem de qualquer género de aparelho que lhe possibilite suster-se submerso mais tempo do que as suas próprias capacidades pulmonares lho concedem. O desportista movimenta as pernas coordenadamente e, pelos impulsos das barbatanas ajustadas aos pés, desliza sob a superfície das águas e, graças à máscara de mergulho e ao tubo respiratório, permite-lhe manter continuamente o rosto imerso sem ter a necessidade de o retirar da água para respirar. A máscara de mergulho é constituída por duas lentes de vidro e pela borracha que adaptada ao rosto protege os olhos e o nariz do contacto com a água, oferecendo assim ao indivíduo uma boa panorâmica do meio aquático. O tubo respiratório aproximadamente com vinte centímetros é um simples tubo cilíndrico, para facilitar a visualização do mesmo poder-se-á imaginar um pedaço de mangueira que numa das extremidades tem um bocal que o mergulhador encaixa entre os lábios e as gengivas, como a ponta oposta ao bocal permanece fora da água o praticante respira sem extrair a cara da água, como já foi dito anteriormente.
E quando mergulha? O atleta inspira profundamente enchendo bem os pulmões de ar e, suspendendo a respiração, inclina-se na vertical impelindo-se com os movimentos das barbatanas numa trajectória rumo ao fundo. Regressando à superfície como um cachalote, expira vigorosamente, expulsando assim a água acumulada no tubo. É nesse escasso período de tempo em que o caçador submarino está submerso que procura as suas presas e, através de uma espingarda que é uma espécie de fisga, dispara um arpão que eventualmente poderá trespassar o alvo.
De maneira nenhuma a caça submarina pode ser considerado um desporto cruel, todo o caçador que se preze selecta peixes que pesem pelo menos, aproximadamente quinhentas gramas.
E existem os que fazem no Verão uns mergulhos a pouca profundidade, contentando-se com os peixes que por aí transitam. No entanto, como nos outros desportos, também há os atletas de alto rendimento, que possuem uma preparação física excepcional e, por isso, conseguem permanecer emersos dois ou mais minutos sem necessitarem de respirar, e capturando se for preciso, peixes a vinte ou mais metros de profundidade.
E no sábado da janela da casa dos meus pais, vislumbrei na suavidade da colina um cordão doirado de luz flutuando sob as águas do Tejo. Abarquei-me a esse deslumbramento que me arrastou pelo Oceano Atlântico induzindo-me a navegar nas memórias do tempo…
O carro avança devagarinho aos solavancos pela estrada de terra batida e, finalmente, descortinamos a praia das Furnas, uma enseada de fina areia suave como neve isolada entre as altas escarpas. Eu e o meu companheiro iniciamos o ritual de vestir o fato de neutrino, o aroma a borracha embriaga-me os sentidos como se tivesse o poder de despertar o aventureiro que existe no meu âmago… E o meu primo João Manuel observa-nos silenciosamente, “Tanto trabalho para passarem umas horitas dentro de água para caçarem uns peixitos”, talvez murmure ele com os seus pensamentos, ou estará mais entusiasmado em enxergar as sereias esticadas ao sol?! E atravessamos a praia numa trajectória recta até ao oceano. Os naturistas que estão numa nudez completa como Adão e Eva, devem pensar por momentos que dois seres vindos de outra galáxia estão a invadir o paraíso…
Por fim, eu e o meu companheiro de mergulho entramos num mar cristalino como um diamante, e o meu primo fica sentado à beira-mar a ver-nos afastar.
Regressamos à praia satisfeitos com a caçada, “Coloca isto na cara e dá uma olhadela a este mar, isto é um paraíso”, afirmo com palavras convincentes, e o meu primo ajusta a máscara ao rosto impulsionando-se sob a superfície do mar.
E agora vejo-o aqui onde estou neste momento e no passado que vem até aqui para me embebedar de plenas recordações que dissipam as fronteiras do tempo. Os teus pés chapinham na água, o teu corpo molhado resplandece a luz doirada do sol, a máscara pendente no pescoço, e os olhos estão maravilhados…
E eu nem queria acreditar, estavas com ar hipnótico como se alguma sereia te tivesse enfeitiçado com um encantamento fatal. Não sei, não sei. Porém, na manhã do dia seguinte, ainda não eram nove horas e já eu estava com o meu primo aguardando a abertura da loja de material de mergulho. Lembras-te João? E depois umas horas mais tarde, deslizávamos nas serenas águas da baía da Praia da Luz, aliás, nas águas onde te revelarias seres um excelente caçador, João.
Anos mais tarde, quando tinha vinte e dois anos de idade a doença que começou a afrontar-me os olhos obrigou-me a abandonar a prática desse maravilhoso desporto, mas, como se costuma dizer, quando Deus fecha uma porta abre uma janela, a vida continuou-me a prendar com outras modalidades desportivas que igualmente me proporcionaram momentos inesquecíveis de felicidade.
Às vezes, ainda desperto do sono, no entanto, ao abrir os olhos constato que é noite cerrada, que são altas horas da madrugada, e que o oceano onde há momentos atrás me encontrava emerso a dez metros de profundidade, debatendo-me com um nero que teimava em não abandonar a sua toca, não passava de um mar fantasiado pela minha mente. Talvez a vida seja também ela uma ilusão um pouco mais consistente…
“”Foste tu que me meteste o vício da caça submarina”, as tuas palavras, João, repetem-se novamente ciclicamente como um mantra que subtilmente tem o poder de ir diluindo o sofrimento dos seres. E é tão bom, sinto-me satisfeito por saber que de alguma forma fui responsável por esse vício salutar que veio enriquecer a tua existência, porque às vezes, são as pequeninas coisas, os prazeres mais simples, que doam aos nossos espíritos uma renovada luz, uma luz repleta de ânimo, de alegria, e de tantos outros sentimentos que se transmutam numa bênção de felicidade.
João, desejo-te bons mergulhos e boas caçadas e, principalmente, muitas felicidades.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Escrever e viver

Não sou um intelectual, aliás, as minhas habilitações literárias são muito reduzidas. Já lá vai o tempo em que os professores do ensino primário pediam aos alunos para redigirem uma composição, e eu descortinava o embaraço de muitos catraios. Uns ficavam com o rosto pasmado como se estivessem a ser asfixiados pelos pensamentos que não brotavam para o papel, havia também os que começavam a esfregar freneticamente o traseiro no assento como se fossem acometidos por uma inesperada comichão, ou outros evidenciavam todos os indícios de esgravatarem exaustivamente os pensamentos na tentativa de delinearem uma ideia.
Às vezes, não sei quanto tempo estaria numa imobilidade contemplativa observando o que me circundava e, ao mesmo tempo, absorvendo-me mais e mais na realidade imaginária que a minha mente ia criando. Depois subitamente, como se uma força externa se apoderasse do meu próprio corpo e do espírito, começava a escrever, a escrever…
Talvez coçasse as barbas grisalhas e, com ar compassivo, proferisse, “Fernando, escreves muito bem, mas a tua composição tem muitas falhas gramaticais”, e eu devia-o olhar, talvez timidamente escondendo a vaidade que sentia, “Fernando, começa a ler muito, está bem?”. Não me lembro o que retorquia, nem o que pensava, mas, no ciclo preparatório e no ensino secundário, repetiram-se mais algumas vezes cenas semelhantes à narrada.
E descortino-me agora a abrir um livro, a desfolhá-lo, a inspirar o aroma a tinta e, frustradamente, a tentar descobrir a textura das palavras, a magia da leitura. Porém, o livro ficava abandonado numa prateleira ou esquecido no canto da mesa.
Confesso que foram raras as vezes que a leitura de um livro me embriagou de júbilo. Sentia-os simplesmente objectos vazios, sem emoções, sem sentimentos, enfim sem alma e vida própria.
“Até Ao Fim”, do autor Virgílio Ferreira, deve ter sido a primeira obra cuja a leitura me saciou de prazer fazendo-me reflectir em questões profundas.
No entanto, continuei a ler muito pouco. Embora escrevesse também raramente, já o acto de escrever sentia-o deleitoso, e escrevia principalmente quando a minha alma transbordava de deslumbramento. Não precisava de um computador, nem de uma folha de papel, quando depois de um dia de escalada desportiva, num desfiladeiro perdido nas montanhas do sul de Espanha, vislumbrava um avermelhado pôr-do-sol a diluir-se no horizonte, ou à noite um céu repleto de estrelas, escrevia nas estrelas, nas galáxias, na eternidade, escrevia até os olhos se me fecharem e adormecer em paz e feliz.
Anos mais tarde o senhor destino impeliu-me numa trajectória que me obrigou a desenvolver mais os músculos do intelecto. Acometido pela doença que quase arrebatou a luz aos meus olhos, inevitavelmente a força íntima do meu carácter instigou-me a lutar, a adaptar-me à nova situação de vida. Aprendi a trabalhar com um software designado, “Leitor de ecrã”, o que me permitiu utilizar o computador, aliás, para os cegos ou pessoas com baixa visão, ter acesso às novas tecnologias da informação é fundamental para a autonomia dos deficientes.
Algumas ferramentas do computador, assim como também o Braille, avivaram as energias mais subtis da minha consciência para o prazer da leitura. Comecei então a ser mais selectivo com as obras que escolhia e que escolho para ler.
“Fernando, refinar o talento é uma questão de trabalho, e tu tens talento, entendes?”, olhou-me intensamente como se conseguisse ler os meus pensamentos, e progrediu com as suas conjecturas, “Uma pessoa até pode ter um português correctíssimo, tudo no sítio certo, pontos de finais, vírgulas, e por aí fora, mas se não tiver talento, nunca conseguirá escrever textos criativos…”, e eu tentava absorver as suas palavras como um bálsamo que mais tarde quando desmotivado, me estimulariam a progredir com os meus escritos. Ah! Minha amiga Cláudia, minha amiga escritora que tanto me tens incentivado a escrever… Mil vezes obrigado.
E foi no dia 1 de Julho do ano de2010 que o meu primeiro livro veio à luz do dia, “Sombras da Alma”.
E claro que continuo a escrever, no entanto, considero que a minha escrita está a sofrer uma metamorfose. Sou um mero aprendiz de escritor, e nesta fase sinto oscilações no estilo e ritmo da escrita, talvez seja um processo natural de evolução. Acontece-me principalmente quando leio bons autores, apercebo-me da influência que os mesmos acabam por exercer nos meus textos. Porém, espero que cada vez mais o meu estilo tenha uma identidade e carácter próprios.
E o próximo livro? Sinceramente não sei, mas já estou a trabalhar numa nova colectânea de contos. É, neste momento, mais importante aperfeiçoar-me do que pensar em datas, há um provérbio chinês que diz, “Quando o discípulo está preparado o mestre aparece”, talvez não se enquadre muito bem neste contexto, enfim na falta de me lembrar de um que se ajuste melhor… Mas, como se costuma dizer, nada acontece por acaso e, por isso, quando o meu próximo filho literário tiver que vir à luz do dia, inevitavelmente esse momento acontecerá no ciclo ilusório do tempo.
Desejo a todos boas leituras e, principalmente, bons sonhos…

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Sutra do coração

“Talvez os cegos de nascença enxerguem um mundo mais harmonioso”, estes e outros pensamentos têm-me aflorado nas duas últimas semanas, espontaneamente como uma espécie de meditação activa que me impulsiona a interrogar, “A percepção da realidade que temos do ambiente circundante, é uma concepção do cérebro?”. Mas subitamente sou embalado por uma embriagante melodia, quase hipnótica, um mantra budista, e esgravato a memória, rebuscando umas palavras, um aglomerado de pensamentos, e um fluido ininterrupto de ideias ajusta-se ao raciocínio que me fervilha na mente.
Somos seres condicionados, a experiência do “eu” é um conjunto de factores que abrangem as necessidades conflituosas de circunstâncias internas, identidade, ego, superego, aos custosos intercessões entre desejos inconscientes e modelos sociais interiorizados, ferramentas de defesa contra a ansiedade, necessidades psicossomáticas e crenças culturais… Enfim o “eu” assim como os outros fenómenos, é uma união de vários elementos e tem uma natureza condicionada, sem essência imutável. Somos experiências em movimento e não identidades individualizadas e, por isso, dir-se-á que o”eu” é vazio de substância própria.
Não tenho conhecimentos científicos nem grandes experiências místicas para divagar sobre às temáticas que abarcam a consciência, o cérebro, a mente, e tantos outros temas complexos que estudam o homem e o universo. Porém, creio que a vida, homem e cosmo, não se reduzem a meros processos biológicos.
Existe uma interligação e interdependência entre todos os fenómenos e todos os seres.
O universo é arquitectado na mente, segundo as nossas próprias vivências.
Abandono as ideias, renuncio a teologias, a indagações racionais, a crenças e dogmas, e absorvo-me em mim mesmo, no espaço silencioso do refúgio interno. E, com o sol a lamber-me as costas, transito calçada acima consciente dos meus ligeiros passos que rangem no empedrado,  o meu braço direito baloiça, e a mão contrai-se como se a bengala que não agarro fosse um recém membro amputado.
Divago agora pela ruela estreita do jardim. E sento-me num banco solitário. Lobrigo as árvores, as flores, e mesmo as formas que vislumbro com clareza, com nitidez, as cores vibrantes, é quase como se as descortinasse pela primeira vez. Sinto-me uma criança a redescobrir o mundo, aquilo que o sentido perceptivo da visão me vai revelando. Foram oito anos em que as cores se desbotaram, as pessoas esvaíram-se até me parecerem difusas como espectros, a cidade transmutou-se em obscurecidas sombras… E subitamente o mundo revela-se-me novamente a reluzir, talvez um pouco diferente de como o imaginei nos últimos anos.
“Já volto”, dizia ontem o rapaz para os bacanos que se abeiravam à porta do café, com palavras extrovertidas que se afunilavam pela extensão da rua, e ajeitou o braço para que eu lho agarrasse. Porém, estaquei explicando-lhe que tinha sido submetido a uma intervenção cirúrgica ao olho direito, e mirava-lhe as feições, o tronco… E onde é que estava aquele rapaz com o cabelo farto, com a cara larga e ombros fortes como os de um halterofilista, que a minha mente criara? Não sei, mas a minha mente quase que recusava que aquela figura com cabelo `cortado à escovinha e com ombros estreitos, que agora sorria, fosse o mesmo rapaz que tantas e tantas vezes me guiou até à porta de casa.
Espaços que há duas semanas atrás me surgiam amplos, largos, parecem-me hoje apertados e estreitos, e o invés. Também sucede. Penso que numa rua vou avistar edifícios altíssimos e descortino um vasto terreno… E tantas outras experiências semelhantes.
Onde é que está a fronteira entre a veracidade e a ilusão? E as barreiras que delimitam o real do imaginário? Não sei, não sei. Mas não será a existência um faz de conta como um sonho?
Um passarito saltita e, batendo as asas energeticamente, voa diluindo-se por entre a folhagem das árvores, num subtil chilrear. E emerge-me na memória uns sábios versos budistas
SUTRA DO CORAÇÃO.
O VAZIO É A FORMA
A FORMA NÃO É DIFERENTE DO VAZIO
O VAZIO NÃO É DIFERENTE DA FORMA.
Do mesmo modo as SENSAÇÕES, as PERCEPÇÕES, as FORMAÇÕES MENTAIS e a CONSCIÊNCIA SÃO VAZIAS.
Assim, Shariputra, todos os fenómenos são VACUIDADE. Não têm características, nem origem, nem fim.
São sem impureza, livres de toda a impureza. Não aumentam nem diminuem.
Eis porque no seio da VACUIDADE não há nem forma, nem sensação, nem percepção, nem formação mental, nem consciência.
Não há olho, nem orelha, nem nariz, nem língua, nem corpo, nem espírito; não há nem forma, nem som, nem odor, nem sabor, nem contacto, nem fenómeno mental. Não há qualidades inerentes à visão, ao ouvido, ao gosto, ao tocar, ao mental e à consciência mental.
Não há nem ignorância, nem velhice, nem morte, nem a sua cessação respectiva.
Do mesmo modo, não há nem sofrimento, nem origem do sofrimento, nem extinção do sofrimento, nem via. Não há sabedoria, nem realização, nem não-realização.
Assim, Shariputra, pois que para os bodhisattvas não há nada a atingir, estes apoiam-se no Conhecimento Transcendente e nele permanecem. Com o espírito desprovido de todo o véu, eles são impávidos. Transcendem toda a visão errónea e passaram definitivamente além do sofrimento.
É apoiando-se no Conhecimento Transcendente que todos os Budas do passado, do presente e do futuro alcançam a budeidade absoluta, o Despertar perfeito e insuperável…
Nota: algumas noções descritas neste post foram baseadas no conjunto de artigos, “Inconsciente e impermanência - Mente e Cérebro”, que se encontram disponíveis neste link.

domingo, 13 de fevereiro de 2011

E hoje deu-me para isto…

P
Considero-me uma criatura contemplativa, porém, não tenho o salutar hábito de escrever poesia. Mas hoje deu-me para isto, deve ser do dia estar melancólico.

Momento presente
A chuva fustiga a janela da sala da minha casa.
A ventania rodopia e uiva como uma fera violenta.
E, como uma raiz, o meu nariz
firmo-o no vidro.
E voo levado no sopro do vento,
Embalado no cântico
Dos chuviscos vigorosos.
E agora sou asas invisíveis, nuvens, cometas, planetas, estrelas…
Sou a essência da vida, eternidade, energia…
Sou átimos, pensamentos, ideias…
Sou o todo e não sou nada,
Porque não sou aquilo que ainda penso que sou.
E desvaneço-me na liberdade deste momento presente.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Gratidão, gratidão e gratidão…

E, mais uma vez, lembrei-me da minha tia Isabel. Enxergo-a numa ruela de casas erguidas de pedras de xisto com os telhados côncavos, já com os seus abençoados 101 anos de idade. Corpo franzino, busto mirrado emanando dos olhos um brilho de uma serenidade arrebatadora. “Cá vou andando como Deus quer”, proferia com a doçura da sua voz débil, mas com o vigor de uma saudável e sábia centenária. Ou para os desalentados que a abordavam com palavras de desânimo, “Ó tia Isabel, a vida é uma porra”, sem amargura retorquia a simpática velhinha, “Ó moço, devias era dar graças a Deus por teres um pedaço de terra para cultivar, uma casita…”, depois abria um sorriso que lhe emoldurava o rosto numa aura vibrante, “Tempos piores, passei-os eu, e olha que não houve manhã que não desse graças a Deus pelas bênções com que o senhor prendou todos os meus dias”. Ou por vezes como se a vida fosse um divertimento, soltava uma risada estridente de fazer arreganhar os cabelos aos interpeladores, que deviam imaginar que o cajado da idosa se transformaria numa vassoura voadora que a feiticeira cavalgaria impelindo-se desvairadamente pelos céus…
Minha tia, a tua presença de outrora não me faz vagar, como um espectro preso obstinadamente a um passado inexistente, pelo vale desolador das saudades impiedosas. Cada recordação da tua humilde existência traz-me um bocadinho de sabedoria ou de ânimo e, às vezes, instigam-me a soltar uma gargalhada. Porém, nunca sinto aquela frieza de perda, de distância, de lonjura, de sofrimento por não estares aqui para me pegares as mãos… E, como se o véu do tempo se dissolvesse, o teu sorriso vem banhar-me a mente com a luz da eternidade, porque os grandes seres já se devem ter desintegrado na verdade única e final da não dualidade…
E agora minha tia, dizes-me que a vida não é nada do que eu estou para aqui a tagarelar, “Ó menino, o ar cortante que no Inverno, sopra lá das serras”, para te ouvir atentamente, sento-me no degrau a teu lado, à soleira da porta, “As noites abafadas de Verão, com o céu estrelado” ou os passarinhos a chilrearem pelo nascer do dia, essas é que são as bênções de Deus que nos enchem de graça”. Depois Balançarias a cabeça e dirias, “O homem quer saber mais que Deus, mas vai acabar por endoidecer”.
Gratidão, gratidão e gratidão…
Sento-me no soalho, cruzo as pernas e abandono-me ao silêncio, à luz que banha este espaço, e desvaneces-te definitivamente do meu espírito.
Ao irromper da alvorada depois de me deliciar na casa dos meus pais, com uma malga de farinha 33, volvi ao meu acolhedor lar. E, após ter arremessado a porta, vislumbrei um esplendor de luz que inundava a sala bailando suspensa no sobrado de madeira clara. E então fui acometido por uma afectuosa graça que volveu calorosamente o meu coração… E remoinhou-me os ouvidos o murmúrio da minha tia, “Dá graças a Deus, menino…”, e senti gratidão, gratidão, agradeci a vida por me abençoar com estas pequenas dádivas.
Aqui estou de pernas cruzadas ainda glorificando o universo por me premiar com estas bênçãos que me enchem de alento.
É, sem dúvida a vida é farta de sofrimento, não necessitamos de meditar na morte, ou nas outras espécies de amarguras, porém o sofrimento é iminente à condição do ser humano. Nos registos do inconsciente imprimem-se os traumas da infância, na adolescência as decepções nublam o espírito, e mais tarde deparamo-nos com uma sociedade competitiva, bombardeada por alucinações de desejos que prometem a felicidade… O casamento, os filhos, as responsabilidades, o stress das grandes cidades, e ficamos ansiosos, sentimo-nos asfixiar… No entanto, o universo presenteia-nos sempre e sempre com instantes que podem trazer um bocadinho de luz, de leveza às nossas tão atribuladas vidas.
São momentos mágicos, de encantamento, mas para os descortinar carecemos de ser feiticeiros ou poetas. São as cores do alvorecer raiando no céu, num deslumbramento embriagante; o simples constatar do vaivém da respiração ou das batidas do coração; as cores vigorosas de uma flor, talvez enraizada à terra num canteiro que nos passa despercebido na agitação citadina; os gritos agudos das gaivotas ou o rumor do bater de asas dos pombos; a voz monótona e repetitiva da vendedora de flores ou o sorriso de uma criança que parecem ter o fascínio de nos diluir na totalidade; e tantos outros momentos de clareza mental… E então agradecemos, enchemos o coração desse sentimento caloroso que é a gratidão.
Minha tia dizia, “Dá graças a Deus”, mas a gratidão é um sentimento intrínseco ao ser e, por isso, crentes e ateus poderão beneficiar das bênções com que somos prendados sempre que o reconhecimento das dádivas da vida, nos aflora ao coração.
Às vezes, penso que a existência, como uma onda do oceano, é a manifestação de uma matriz semelhante a um sonho, e que num tempo que desconheço despertarei desta alucinação. Não sei, não sei. Mas até lá, vou sonhando, sorrindo, decepcionando-me, chorando, lutando, vencendo, desesperando-me, amargurando-me, amando, aprendendo… Enfim vivendo e vivendo, e claro agradecendo…
“Ó menino…” oiço ainda o rumor da tua voz esvaindo-se como uma música celestial…

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Coimbra, cidade da luz dos meus olhos


E, quando pensei redigir este texto, fui impulsionado a fazer uma pesquisa na Internet, porém, adulteraria a magia dessa cidade que baila na minha consciência como uma manifestação de luz.
Cidade imemorial, há quanto tempo te conheço, Coimbra?
Há sol, calor estagnado na tarde e na Damaia eu estou sentado na esplanada do café, e há vozes dispersas, risadas soltas… Então tu chegas amigo, tento esgravatar a memória, mas não encontro o teu nome, amigo que o destino separou, não faz mal, és agora integral, diluído na totalidade do “meu” âmago. E nós todos, esse grupo alegre de adolescentes, circundamos a tua mesa e, sufocadas entre amplas gargalhadas, as tuas palavras saem disparadas, e os teus olhos têm um brilho de rebeldia, um brilho de esperança, um brilho de quem acredita na vida, “Aquilo é que foi uma praxe”, “O Tonecas ficou a dormir no miradouro”. E eu vou imaginando uma Coimbra longínqua, quase fictícia. Vejo estudantes de capas negras, oiço vozes que ressoam inaudíveis, gargalhadas soltas numa noite de boémia, chores e muita alegria na queima das fitas, e Coimbra envolta numa atmosfera de esperança, de gente que acredita num mundo mais feliz…
E depois mais tarde, Coimbra está inevitavelmente ligada a Lisboa por uma auto-estrada que, em determinadas madrugadas, parecia não ter final.
Deve ser cinco horas e poucos minutos, o mundo ainda está envolto em trevas, oiço o ininterrupto rumor do motor que às vezes se vai desvanecendo na minha sonolência. Meu pai conduz em silêncio, minha mãe talvez murmure palavras desconectadas, apenas para manter meu pai desperto… E os quilómetros vão sendo devorados, e a esperança essa rejuvenesce nos nossos espíritos. De vez em quando, vislumbro através das córneas opacas dos meus olhos, as luzes de um camião. Finalmente a cidade imersa no brilho da manhã, mas, para mim, são espectros que se movimentam sem formas definidas. Descortino ainda a grande sombra do Hospital da Universidade de Coimbra. E, porque em determinados momentos a consciência fica entorpecida, o dia do internamento passa irreal, diluído num espaço sem tempo concreto. E agora onde estás? Onde te encontro? Descortino-te no dia da cirurgia, a cama desliza pelos corredores e o ruído rugoso das rodas vibra-me nos tímpanos. Depois no bloco operatório é tudo tão rápido e, como se parte da minha existência fosso deitada fora, o mundo apaga-se.
A operação correu bem, passam três dias e eu tenho alta.
Não acredito! As portas envidraçadas do hospital abrem-se lateralmente e eu saio para a rua. Não acredito! Engulo em seco, porém, começo a chorar, as lágrimas escorrem-me faces abaixo, mordo os lábios e lambo os fios de líquido salgado. E é dia 9 de Junho de 2003, dia de uma aparição divinal. Coimbra resplandece na luz morna do final da tarde. Tudo é imenso, excessivo, as cores, as formas… Estou a ver, estou a ver!
Mas, porque existem coisas na vida que não têm explicação, em Fevereiro do ano de 2004, o meu olho começou a fazer rejeição da córnea.
E depois? E depois a vida continuou. Aprendi a lidar com a cegueira, a ver o mundo com os sentidos do tacto e da audição. Não foi um processo fácil, no entanto, foi enriquecedor na minha experiência de ser humano…
E os anos passam, passam…
“Amanhã temos que estar no Hospital da Universidade de Coimbra”, diz meu pai com a voz oscilando, “Vais ser operado na quinta-feira”. Estou sem palavras, emudecido, fecho os olhos voltando-os a abrir, imagino que vislumbro o mundo cheio de luz, cheio de cores. Minha mãe o que é que pensa? O que é que sente? Não sei, nunca o saberei, porque o amor de mãe é inigualável. Mas tem esperança que eu volto a ver, mas deve rezar por mim esta noite.
O ritual repete-se, a auto-estrada, os veículos, as luzes e, por fim, Coimbra e o Hospital da Universidade…
É dia 20 de Janeiro de 2011 e deve ser cerca das 9 horas. Entro no bloco operatório. Uma enfermeira fixa-me no peito as ventosas, “Tem um nome muito bonito”, digo eu, preciso de falar, de tentar descontrair-me. Agora chega a médica anestesista, pica-me a veia, pergunta-me quanto peso, e eu começo-me a sentir tonto… E subitamente a vida apaga-se. Talvez minha consciência vaguei do outro lado da existência, não sei. Mas meu corpo está sustento na vida por máquinas, a respiração faz-se através de um ventilador… E dois grandes artistas, a Doutora Maria João e o Professor Murta, trabalham no meu olho, com empenho, com dedicação…
“Ainda estou vivo, não morri”, desta vez não digo esta frase. Estou no quarto, minha mãe diz-me que correu tudo bem.
É sexta-feira, uma empregada vem-me buscar à enfermaria e leva-me à sala de observações. Retiram-me o penso ocular, “Já vês alguma coisa?”, começo a sorrir, “Ele já está a ver”, e vislumbro um grupo de gente jovem de batas brancas, “Tanta gente”, “Aqui do meu lado direito está uma rapariga que é magrinha, mas bonita, vejo-lhe um sorriso simpático desenhar-se-lhe nos lábios, e mais risos. São os alunos do Professor Murta. E então entra o professor, senta-se e observa-me os olhos durante poucos instantes, talvez quinze segundos, “Podes ir para casa, tens alta”. E eu saio da sala, saio sem dizer uma palavra, mas levo comigo um bocadinho de esperança, só um bocadinho que retirei daquelas vozes, daqueles sorrisos, daqueles jovens e futuros médicos.
Agora vejo novamente Coimbra excessiva, intensa, luminosa, colorida…
E é caso para dizer que Coimbra é a cidade da luz dos meus olhos…
Deixo aqui um beijinho cheio de ternura e carinho para a Doutora Maria João e um abraço caloroso para o Professor Murta.

sábado, 29 de janeiro de 2011

Prefácio


Duas Palavras de Abertura

Fernando Nunes propõe-se publicar este que julgo ser o seu primeiro livro: Sombras da Alma. Uma obra que revela um espírito questionador e inconformado perante os enigmas, os paradoxos, as arbitrariedades e as injustiças de que a vida é entretecida.
Não conheço pessoalmente o Autor. Mas sei-o Alguém que, perante os infortúnios que lhe bateram à porta, limitando-lhe alguns sentidos e faculdades, não se deixou abater num passivo e fatalista baixar de braços. Antes, como que descobrindo novas, redobradas e insuspeitadas energias, superou as ciladas da natureza, exponenciando a força interior de que se sentia – e sente – possuído.
Este recurso à escrita é disso prova insofismável. Fernando Nunes procura nela um como que contraponto às adversidades; um exercício compensatório e catárctico de uma condição que lhe coarcta significativamente a fruição das alegrias, das belezas e dos prazeres que a natureza prodigaliza. Embora aqui e ali, mais em entrelinhas, insinue um subtil sentimento de inconformismo, raramente de revolta, – o que ressalta da globalidade destes textos é uma tenaz e entusiasmada atitude de aposta na vida, nos seus valores e nos seus apelos: o amor, a amizade, a alegria, o encanto, o deslumbramento.
Um dos aspectos mais relevantes destes textos (chamemos-lhes textos à falta de uma arrumação formal bem definida) consiste em estabelecer um nexo muito frágil e diluído entre ficção e realidade. O Autor funciona como que um demiurgo que põe e dispõe sobre as suas personagens, projectando-se nelas. É o que se passa logo no episódio inicial, com a personagem Jéssica, onde podemos ler:
“Estou a inventar tudo, estou a escrever um conto”, para logo advertir: “Devias saber que por vezes as personagens ganham vida própria”. Jéssica acaba por “sair do conto” para assumir existência real e um envolvimento amoroso.
O Autor-narrador, que transversalmente exerce a profissão de tatuador, sobretudo de símbolos esotéricos e tribais que para além do grafismo epidérmico exprimam uma imagem interior do tatuado, movimenta-se num mundo de contra-cultura transgressiva e num certo casulo onírico onde digere as suas fantasias, os seus desejos e frustrações. Toda uma gama de situações e estados de alma induzida pelo álcool, a nicotina e as ganzas; a adrenalina dos desportos radicais que levam à morte; os impulsos eróticos que, em comportamentos desviantes, levam à mais infame e degradante actividade pedófila.
Mas nem sempre usa tintas negras, imagens negativas, para fixar o mundo circundante. Também sabe recorrer a quadros de uma transparência e elegância que nos tocam e sensibilizam, aqueles que retratam a solidariedade desprendida, a entrega sem fingimento, a partilha sem calculismo. Atitudes que surpreendemos um pouco por toda a obra, associadas a nomes como Paula, Raquel, Soraia, Maria, Angélica, Pedro, o Santo, o Bebé Perguntador.
Fernando Nunes sabe criar personagens capazes de projectarem os seus sentimentos, as suas emoções, as suas convicções e os seus fantasmas. Daí que a leitura destes textos não seja pacífica e, muito menos, meramente lúdica. Ela remete-nos para problemáticas do tempo presente, mas sobretudo do ser e da transcendência. Espectros, medos, sombras e mundos irreais coabitam nestes enredos em precário equilíbrio entre personagem literária e protótipo existencial. O além-morte, a transmigração das almas, a crença ou descrença num Deus omnipresente e bondoso, – são alguns desses enigmas e mistérios com que o Autor se defronta e se debate.
Que estes breves e desalinhados tópicos sirvam para aguçar a curiosidade do leitor, que não sairá defraudada. Muito do que aqui se pode ler corresponde fielmente ao muito com que a vida se encarrega de nos surpreender e nos desafiar. Porque é na vivência dos dias que o Autor vai buscar a energia e a substância com que alimenta a sua escrita.

Braga, Abril de 2010
Cláudio Lima

Uma breve apresentação


Para me conhecerem melhor, deixo-vos o texto da contra-capa da publicação do meu primeiro livro, aliás, um bebé literário que nasceu no dia 1 de Julho do ano de 2010.
Como ainda me restam cerca de cem exemplares para venda, refiro alguns pormenores para esclarecimento de quem o desejar adquirir.
Obra: contos.
Total de páginas: 120.
Encadernação com excelente qualidade.
Preço: 10€
Para comprar o livro contacte-me pelo e-mail: fernandonunes.pt@gmail.com

Sombras da Alma
Fernando Nunes
TARTARUGA - Manuela Morais
© Fernando Nunes, 2010
fernandonunes.pt@gmail.com
Esta edição pertence, totalmente, ao seu autor
© Capa de ESPIGA Pinto
Desenho da capa de ESPIGA Pinto, exclusivo para esta 1.ª edição
Direitos de reprodução, tradução e adaptação, reservados para todos os países
1ª edição: 1.000 exemplares
ISBN: 978-989-8057-21-1
Depósito legal:313227/10


Contra-capa

No ano de 1967 do mês de Abril do dia 16, quando os ponteiros dos relógios assinalavam zero horas e quarenta minutos, um berro vibrante estalou na sala de partos da maternidade Alfredo da Costa. E ele, por detrás da máscara, sorriu e, por breves momentos, foi arrebatado numa onda de ternura, de amor... Já perdera a conta, ao longo da sua carreira de médico parteiro, de quantas criaturas arrancara ao aconchego do ventre das suas mães e as trouxera à luz da vida. E, agora estava ali, esquecido do sarcasmo das anedotas que contara antes de iniciar o trabalho de parto, de olhos esbugalhados a contemplar o recém-nascido a chorar, a pontapear e a esmurrar o vazio. Depois, subitamente, deu meia volta sob os pés, abriu a porta e saiu da sala.
E, assim, nasceu o Fernando José Afonso Nunes, nesse dia em que muitos outros bebés, por todo o planeta, abriam os olhos , pela primeira vez, para iniciarem a viagem dos seus destinos.
Vejo-te aí, aqui, onde és eterno, nesse espaço escoado de tempo. A tua mãe a amamentar-te, a sorrir, está tão feliz. O teu pai, com as palavras cheias de orgulho e de contentamento, fala de ti para os amigos, talvez diga o meu filhote está muito engraçado... E tu meu querido Fernandinho, alimentavas-te, choravas, davas as primeiras risadas e, de certeza, que sonhavas muito, que na tua consciência de bebé revias o mapa da tua existência, para que as fantasias, mais tarde, se tornassem reais. E gatinhaste, balbuciaste as primeiras sílabas, mamã e papá, e deste os primeiros passeios no miradouro do Bairro das Colónias, na cidade de Lisboa... E, agora, tens que crescer rapidamente, tenho poucas linhas para te recordar.
Que idade tens? Cinco anos. Contemplas, com os olhos serenos de pureza, a tua irmã bebé, a Paula. Brincaram, zaragatearam e, com a energia do amor, uniram os seus corações de irmãos.
A adolescência, veloz como um relâmpago... E os estudos, e as primeiras paixões, e o gosto pelas actividades desportivas... Ah! Os sonhos que já não são sonhos mas plena felicidade. O rumor do mar, a brisa salgada e azul, azul, a caça submarina. E,  uns anos mais tarde, estou a ver-te, com a destreza de um gato, a escalares uma falésia, a iniciares-te na escalada desportiva.
Dos vinte aos trinta anos, trabalhas e, continuas a sonhar, a praticar desporto... E há sempre os amigos, aliás muitos amigos. E, ainda, tens tempo para alguns divertimentos, para algumas noitadas... Cada momento tão intenso, e, porque os segundos não se diluíram no vazio do esquecimento, a tua vida é real.
Já estás com trinta e um anos de idade. Desesperado, talvez estejas a chorar... sentes-te no fundo de um poço inundado de trevas, porque uma doença atacou os teus olhos. Mas não te deixas afogar, lutas, encontras novas montanhas para galgares. Aprendes a conviver com a cegueira, a orientares-te com uma bengala, a utilizar um shofware para poderes trabalhar com o computador.
E o tempo, passa, passa... E, subitamente, estás a frequentar o curso de formadores.
Movimenta, com a agilidade de um maestro, os braços e vai ensaiando uma valsa de passos miudinhos e as palavras sáiem-lhe energeticamente, entusiasticamente... És tu Fernando, afinal de contas, sou eu, na Fundação Raquel e Martin Sain, a ensinar outros cegos a trabalhar com o computador.
Para os meus pais, a minha irmã e toda a minha família, os meus amigos, os meus ex-formandos, enfim, todos, todos os que se têm cruzado na minha existência, que me fazem compreender agora, neste momento de transcendência, que sou um simples átomo flutuando na dança cósmica de constantes transmutações. Deixo-vos aqui, apenas, uma palavra. Bem-haja, que as vossas vidas sejam abençoadas.


Literatura sem limites


Boa tarde, seja bem-vindo a este pequenino, mas acolhedor espaço que pretende divulgar as obras de muitos escritores que, como eu, optaram por publicar os seus livros numa editora não comercial. Ou seja o autor é quem paga os custos da publicação, assim como também é o responsável pela divulgação da obra e a venda dos exemplares.
E um dia escreve-se meia dúzia de palavras, uma frase, um parágrafo... E, principalmente, remexe-se na intimidade do ser, do âmago da vida, talvez se esgravate as arestas das nossas psicoses ou, ao invés, encontramos matrizes de forças divinais... E vislumbramos intensamente o mundo que nos circunda e, abandonando o nosso egocentrismo, diluímo-nos nas ideias, nos pensamentos, nas frustrações e nas vitórias das personagens que inventamos, que criamos, que de alguma forma se tornam verdadeiras como o real, o real que a cada pulsação do coração já é simples recordação, simples memória...
Enfim, o ecrã vai-se enchendo de letrinhas, de palavras, de sentimentos, às vezes metáforas irónicas ou coisas emotivas... Depois lemos e relemos, mostramos o texto à mãe, ao pai, aos irmãos, aos amigos e, surpreendentemente, ouvimos, “Eh pá, porreiro”, “Muito bem, escreves com alma””, Gostei, gostei mesmo, deves continuar a escrever e pensar seriamente em publicar”.
E no ventre dos sonhos começamos a gerar o nosso primeiro filho literário...
Finalmente, o projecto concretiza-se, retiramos uns trocos das nossas economias e, por conta própria, publicamos o primeiro livro.
Às vezes desanimamos, pois ter quinhentos ou mil exemplares encafuados no canto da casa, para os vender não é, sem dúvida, tarefa fácil. Por isso, surgiu-me a ideia de criar este espaço onde todos os autores independentes possam expor as suas obras.
Fica assim feito o convite aos autores para deixarem aqui uma breve apresentação dos vossos livros, bem como os detalhes para a venda dos mesmos.