terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Coimbra, cidade da luz dos meus olhos


E, quando pensei redigir este texto, fui impulsionado a fazer uma pesquisa na Internet, porém, adulteraria a magia dessa cidade que baila na minha consciência como uma manifestação de luz.
Cidade imemorial, há quanto tempo te conheço, Coimbra?
Há sol, calor estagnado na tarde e na Damaia eu estou sentado na esplanada do café, e há vozes dispersas, risadas soltas… Então tu chegas amigo, tento esgravatar a memória, mas não encontro o teu nome, amigo que o destino separou, não faz mal, és agora integral, diluído na totalidade do “meu” âmago. E nós todos, esse grupo alegre de adolescentes, circundamos a tua mesa e, sufocadas entre amplas gargalhadas, as tuas palavras saem disparadas, e os teus olhos têm um brilho de rebeldia, um brilho de esperança, um brilho de quem acredita na vida, “Aquilo é que foi uma praxe”, “O Tonecas ficou a dormir no miradouro”. E eu vou imaginando uma Coimbra longínqua, quase fictícia. Vejo estudantes de capas negras, oiço vozes que ressoam inaudíveis, gargalhadas soltas numa noite de boémia, chores e muita alegria na queima das fitas, e Coimbra envolta numa atmosfera de esperança, de gente que acredita num mundo mais feliz…
E depois mais tarde, Coimbra está inevitavelmente ligada a Lisboa por uma auto-estrada que, em determinadas madrugadas, parecia não ter final.
Deve ser cinco horas e poucos minutos, o mundo ainda está envolto em trevas, oiço o ininterrupto rumor do motor que às vezes se vai desvanecendo na minha sonolência. Meu pai conduz em silêncio, minha mãe talvez murmure palavras desconectadas, apenas para manter meu pai desperto… E os quilómetros vão sendo devorados, e a esperança essa rejuvenesce nos nossos espíritos. De vez em quando, vislumbro através das córneas opacas dos meus olhos, as luzes de um camião. Finalmente a cidade imersa no brilho da manhã, mas, para mim, são espectros que se movimentam sem formas definidas. Descortino ainda a grande sombra do Hospital da Universidade de Coimbra. E, porque em determinados momentos a consciência fica entorpecida, o dia do internamento passa irreal, diluído num espaço sem tempo concreto. E agora onde estás? Onde te encontro? Descortino-te no dia da cirurgia, a cama desliza pelos corredores e o ruído rugoso das rodas vibra-me nos tímpanos. Depois no bloco operatório é tudo tão rápido e, como se parte da minha existência fosso deitada fora, o mundo apaga-se.
A operação correu bem, passam três dias e eu tenho alta.
Não acredito! As portas envidraçadas do hospital abrem-se lateralmente e eu saio para a rua. Não acredito! Engulo em seco, porém, começo a chorar, as lágrimas escorrem-me faces abaixo, mordo os lábios e lambo os fios de líquido salgado. E é dia 9 de Junho de 2003, dia de uma aparição divinal. Coimbra resplandece na luz morna do final da tarde. Tudo é imenso, excessivo, as cores, as formas… Estou a ver, estou a ver!
Mas, porque existem coisas na vida que não têm explicação, em Fevereiro do ano de 2004, o meu olho começou a fazer rejeição da córnea.
E depois? E depois a vida continuou. Aprendi a lidar com a cegueira, a ver o mundo com os sentidos do tacto e da audição. Não foi um processo fácil, no entanto, foi enriquecedor na minha experiência de ser humano…
E os anos passam, passam…
“Amanhã temos que estar no Hospital da Universidade de Coimbra”, diz meu pai com a voz oscilando, “Vais ser operado na quinta-feira”. Estou sem palavras, emudecido, fecho os olhos voltando-os a abrir, imagino que vislumbro o mundo cheio de luz, cheio de cores. Minha mãe o que é que pensa? O que é que sente? Não sei, nunca o saberei, porque o amor de mãe é inigualável. Mas tem esperança que eu volto a ver, mas deve rezar por mim esta noite.
O ritual repete-se, a auto-estrada, os veículos, as luzes e, por fim, Coimbra e o Hospital da Universidade…
É dia 20 de Janeiro de 2011 e deve ser cerca das 9 horas. Entro no bloco operatório. Uma enfermeira fixa-me no peito as ventosas, “Tem um nome muito bonito”, digo eu, preciso de falar, de tentar descontrair-me. Agora chega a médica anestesista, pica-me a veia, pergunta-me quanto peso, e eu começo-me a sentir tonto… E subitamente a vida apaga-se. Talvez minha consciência vaguei do outro lado da existência, não sei. Mas meu corpo está sustento na vida por máquinas, a respiração faz-se através de um ventilador… E dois grandes artistas, a Doutora Maria João e o Professor Murta, trabalham no meu olho, com empenho, com dedicação…
“Ainda estou vivo, não morri”, desta vez não digo esta frase. Estou no quarto, minha mãe diz-me que correu tudo bem.
É sexta-feira, uma empregada vem-me buscar à enfermaria e leva-me à sala de observações. Retiram-me o penso ocular, “Já vês alguma coisa?”, começo a sorrir, “Ele já está a ver”, e vislumbro um grupo de gente jovem de batas brancas, “Tanta gente”, “Aqui do meu lado direito está uma rapariga que é magrinha, mas bonita, vejo-lhe um sorriso simpático desenhar-se-lhe nos lábios, e mais risos. São os alunos do Professor Murta. E então entra o professor, senta-se e observa-me os olhos durante poucos instantes, talvez quinze segundos, “Podes ir para casa, tens alta”. E eu saio da sala, saio sem dizer uma palavra, mas levo comigo um bocadinho de esperança, só um bocadinho que retirei daquelas vozes, daqueles sorrisos, daqueles jovens e futuros médicos.
Agora vejo novamente Coimbra excessiva, intensa, luminosa, colorida…
E é caso para dizer que Coimbra é a cidade da luz dos meus olhos…
Deixo aqui um beijinho cheio de ternura e carinho para a Doutora Maria João e um abraço caloroso para o Professor Murta.

1 comentário:

  1. Fiquei deliciada com a beleza deste texto! . . .
    O texto encanta, porque actua à maneira de um "encantamento", tornando a leitura susceptível de realizar milagres, fascinar; tendo ingrediente essencial para o caminho do mundo mágico da escrita.
    Este texto é verdadeiramente luminoso e profundo, apaixona e alimenta o sonho. Não existe barreira entre ficção e realidade. É isso mesmo a verdadeira literatura.
    PARABÉNS . . .
    Foi escrito com muita mestria.

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