quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Gratidão, gratidão e gratidão…

E, mais uma vez, lembrei-me da minha tia Isabel. Enxergo-a numa ruela de casas erguidas de pedras de xisto com os telhados côncavos, já com os seus abençoados 101 anos de idade. Corpo franzino, busto mirrado emanando dos olhos um brilho de uma serenidade arrebatadora. “Cá vou andando como Deus quer”, proferia com a doçura da sua voz débil, mas com o vigor de uma saudável e sábia centenária. Ou para os desalentados que a abordavam com palavras de desânimo, “Ó tia Isabel, a vida é uma porra”, sem amargura retorquia a simpática velhinha, “Ó moço, devias era dar graças a Deus por teres um pedaço de terra para cultivar, uma casita…”, depois abria um sorriso que lhe emoldurava o rosto numa aura vibrante, “Tempos piores, passei-os eu, e olha que não houve manhã que não desse graças a Deus pelas bênções com que o senhor prendou todos os meus dias”. Ou por vezes como se a vida fosse um divertimento, soltava uma risada estridente de fazer arreganhar os cabelos aos interpeladores, que deviam imaginar que o cajado da idosa se transformaria numa vassoura voadora que a feiticeira cavalgaria impelindo-se desvairadamente pelos céus…
Minha tia, a tua presença de outrora não me faz vagar, como um espectro preso obstinadamente a um passado inexistente, pelo vale desolador das saudades impiedosas. Cada recordação da tua humilde existência traz-me um bocadinho de sabedoria ou de ânimo e, às vezes, instigam-me a soltar uma gargalhada. Porém, nunca sinto aquela frieza de perda, de distância, de lonjura, de sofrimento por não estares aqui para me pegares as mãos… E, como se o véu do tempo se dissolvesse, o teu sorriso vem banhar-me a mente com a luz da eternidade, porque os grandes seres já se devem ter desintegrado na verdade única e final da não dualidade…
E agora minha tia, dizes-me que a vida não é nada do que eu estou para aqui a tagarelar, “Ó menino, o ar cortante que no Inverno, sopra lá das serras”, para te ouvir atentamente, sento-me no degrau a teu lado, à soleira da porta, “As noites abafadas de Verão, com o céu estrelado” ou os passarinhos a chilrearem pelo nascer do dia, essas é que são as bênções de Deus que nos enchem de graça”. Depois Balançarias a cabeça e dirias, “O homem quer saber mais que Deus, mas vai acabar por endoidecer”.
Gratidão, gratidão e gratidão…
Sento-me no soalho, cruzo as pernas e abandono-me ao silêncio, à luz que banha este espaço, e desvaneces-te definitivamente do meu espírito.
Ao irromper da alvorada depois de me deliciar na casa dos meus pais, com uma malga de farinha 33, volvi ao meu acolhedor lar. E, após ter arremessado a porta, vislumbrei um esplendor de luz que inundava a sala bailando suspensa no sobrado de madeira clara. E então fui acometido por uma afectuosa graça que volveu calorosamente o meu coração… E remoinhou-me os ouvidos o murmúrio da minha tia, “Dá graças a Deus, menino…”, e senti gratidão, gratidão, agradeci a vida por me abençoar com estas pequenas dádivas.
Aqui estou de pernas cruzadas ainda glorificando o universo por me premiar com estas bênçãos que me enchem de alento.
É, sem dúvida a vida é farta de sofrimento, não necessitamos de meditar na morte, ou nas outras espécies de amarguras, porém o sofrimento é iminente à condição do ser humano. Nos registos do inconsciente imprimem-se os traumas da infância, na adolescência as decepções nublam o espírito, e mais tarde deparamo-nos com uma sociedade competitiva, bombardeada por alucinações de desejos que prometem a felicidade… O casamento, os filhos, as responsabilidades, o stress das grandes cidades, e ficamos ansiosos, sentimo-nos asfixiar… No entanto, o universo presenteia-nos sempre e sempre com instantes que podem trazer um bocadinho de luz, de leveza às nossas tão atribuladas vidas.
São momentos mágicos, de encantamento, mas para os descortinar carecemos de ser feiticeiros ou poetas. São as cores do alvorecer raiando no céu, num deslumbramento embriagante; o simples constatar do vaivém da respiração ou das batidas do coração; as cores vigorosas de uma flor, talvez enraizada à terra num canteiro que nos passa despercebido na agitação citadina; os gritos agudos das gaivotas ou o rumor do bater de asas dos pombos; a voz monótona e repetitiva da vendedora de flores ou o sorriso de uma criança que parecem ter o fascínio de nos diluir na totalidade; e tantos outros momentos de clareza mental… E então agradecemos, enchemos o coração desse sentimento caloroso que é a gratidão.
Minha tia dizia, “Dá graças a Deus”, mas a gratidão é um sentimento intrínseco ao ser e, por isso, crentes e ateus poderão beneficiar das bênções com que somos prendados sempre que o reconhecimento das dádivas da vida, nos aflora ao coração.
Às vezes, penso que a existência, como uma onda do oceano, é a manifestação de uma matriz semelhante a um sonho, e que num tempo que desconheço despertarei desta alucinação. Não sei, não sei. Mas até lá, vou sonhando, sorrindo, decepcionando-me, chorando, lutando, vencendo, desesperando-me, amargurando-me, amando, aprendendo… Enfim vivendo e vivendo, e claro agradecendo…
“Ó menino…” oiço ainda o rumor da tua voz esvaindo-se como uma música celestial…

1 comentário:

  1. Tive a felicidade de receber este texto tão mágico, tão delicioso, que mais não posso dizer do fantástico mundo imaginário (ou não) do seu encantador Autor.
    Parabéns . . .
    Gostava de continuar a ler estas maravilhosas histórias . . .
    Abraço afectuoso

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