quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Sutra do coração

“Talvez os cegos de nascença enxerguem um mundo mais harmonioso”, estes e outros pensamentos têm-me aflorado nas duas últimas semanas, espontaneamente como uma espécie de meditação activa que me impulsiona a interrogar, “A percepção da realidade que temos do ambiente circundante, é uma concepção do cérebro?”. Mas subitamente sou embalado por uma embriagante melodia, quase hipnótica, um mantra budista, e esgravato a memória, rebuscando umas palavras, um aglomerado de pensamentos, e um fluido ininterrupto de ideias ajusta-se ao raciocínio que me fervilha na mente.
Somos seres condicionados, a experiência do “eu” é um conjunto de factores que abrangem as necessidades conflituosas de circunstâncias internas, identidade, ego, superego, aos custosos intercessões entre desejos inconscientes e modelos sociais interiorizados, ferramentas de defesa contra a ansiedade, necessidades psicossomáticas e crenças culturais… Enfim o “eu” assim como os outros fenómenos, é uma união de vários elementos e tem uma natureza condicionada, sem essência imutável. Somos experiências em movimento e não identidades individualizadas e, por isso, dir-se-á que o”eu” é vazio de substância própria.
Não tenho conhecimentos científicos nem grandes experiências místicas para divagar sobre às temáticas que abarcam a consciência, o cérebro, a mente, e tantos outros temas complexos que estudam o homem e o universo. Porém, creio que a vida, homem e cosmo, não se reduzem a meros processos biológicos.
Existe uma interligação e interdependência entre todos os fenómenos e todos os seres.
O universo é arquitectado na mente, segundo as nossas próprias vivências.
Abandono as ideias, renuncio a teologias, a indagações racionais, a crenças e dogmas, e absorvo-me em mim mesmo, no espaço silencioso do refúgio interno. E, com o sol a lamber-me as costas, transito calçada acima consciente dos meus ligeiros passos que rangem no empedrado,  o meu braço direito baloiça, e a mão contrai-se como se a bengala que não agarro fosse um recém membro amputado.
Divago agora pela ruela estreita do jardim. E sento-me num banco solitário. Lobrigo as árvores, as flores, e mesmo as formas que vislumbro com clareza, com nitidez, as cores vibrantes, é quase como se as descortinasse pela primeira vez. Sinto-me uma criança a redescobrir o mundo, aquilo que o sentido perceptivo da visão me vai revelando. Foram oito anos em que as cores se desbotaram, as pessoas esvaíram-se até me parecerem difusas como espectros, a cidade transmutou-se em obscurecidas sombras… E subitamente o mundo revela-se-me novamente a reluzir, talvez um pouco diferente de como o imaginei nos últimos anos.
“Já volto”, dizia ontem o rapaz para os bacanos que se abeiravam à porta do café, com palavras extrovertidas que se afunilavam pela extensão da rua, e ajeitou o braço para que eu lho agarrasse. Porém, estaquei explicando-lhe que tinha sido submetido a uma intervenção cirúrgica ao olho direito, e mirava-lhe as feições, o tronco… E onde é que estava aquele rapaz com o cabelo farto, com a cara larga e ombros fortes como os de um halterofilista, que a minha mente criara? Não sei, mas a minha mente quase que recusava que aquela figura com cabelo `cortado à escovinha e com ombros estreitos, que agora sorria, fosse o mesmo rapaz que tantas e tantas vezes me guiou até à porta de casa.
Espaços que há duas semanas atrás me surgiam amplos, largos, parecem-me hoje apertados e estreitos, e o invés. Também sucede. Penso que numa rua vou avistar edifícios altíssimos e descortino um vasto terreno… E tantas outras experiências semelhantes.
Onde é que está a fronteira entre a veracidade e a ilusão? E as barreiras que delimitam o real do imaginário? Não sei, não sei. Mas não será a existência um faz de conta como um sonho?
Um passarito saltita e, batendo as asas energeticamente, voa diluindo-se por entre a folhagem das árvores, num subtil chilrear. E emerge-me na memória uns sábios versos budistas
SUTRA DO CORAÇÃO.
O VAZIO É A FORMA
A FORMA NÃO É DIFERENTE DO VAZIO
O VAZIO NÃO É DIFERENTE DA FORMA.
Do mesmo modo as SENSAÇÕES, as PERCEPÇÕES, as FORMAÇÕES MENTAIS e a CONSCIÊNCIA SÃO VAZIAS.
Assim, Shariputra, todos os fenómenos são VACUIDADE. Não têm características, nem origem, nem fim.
São sem impureza, livres de toda a impureza. Não aumentam nem diminuem.
Eis porque no seio da VACUIDADE não há nem forma, nem sensação, nem percepção, nem formação mental, nem consciência.
Não há olho, nem orelha, nem nariz, nem língua, nem corpo, nem espírito; não há nem forma, nem som, nem odor, nem sabor, nem contacto, nem fenómeno mental. Não há qualidades inerentes à visão, ao ouvido, ao gosto, ao tocar, ao mental e à consciência mental.
Não há nem ignorância, nem velhice, nem morte, nem a sua cessação respectiva.
Do mesmo modo, não há nem sofrimento, nem origem do sofrimento, nem extinção do sofrimento, nem via. Não há sabedoria, nem realização, nem não-realização.
Assim, Shariputra, pois que para os bodhisattvas não há nada a atingir, estes apoiam-se no Conhecimento Transcendente e nele permanecem. Com o espírito desprovido de todo o véu, eles são impávidos. Transcendem toda a visão errónea e passaram definitivamente além do sofrimento.
É apoiando-se no Conhecimento Transcendente que todos os Budas do passado, do presente e do futuro alcançam a budeidade absoluta, o Despertar perfeito e insuperável…
Nota: algumas noções descritas neste post foram baseadas no conjunto de artigos, “Inconsciente e impermanência - Mente e Cérebro”, que se encontram disponíveis neste link.

2 comentários:

  1. Mais uma vez um texto para deliciar. . .
    Admiro a sua tenacidade e acima de tudo, a sua bela escrita!
    É isso mesmo, a vida tem de ser um acto de crescimento interior, um acto de amor, um acto de amadurecimento e amar tudo o que nos deposita no regaço!
    A importância da promoção do desenvolvimento intelectual não pode ser um mito. Tem de ser feita de uma forma coesa e verdadeira, sendo isso mesmo que sinto nos seus belíssimos textos.
    Parabéns de novo por partilhar esta maravilha!
    Abraços nossos.

    ResponderEliminar
  2. Adorei este texto e o que nos transmite, continua
    amigo
    Cristina Godinho

    ResponderEliminar